FNAMzine #4 - A voz do SNS - Flipbook - Page 10
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Relatos SNS Hospitalar
Reflexões e Desafios sobre
uma Década na Neurologia
TIAGO GERALDES
NEUROLOGIA
A trajetória de um médico é marcada por desafios e conquistas, mas também por mudanças de
perspetiva que podem moldar a nossa experiência
profissional. Ao refletir sobre meu estado de espírito em 2017, ao finalizar o internato de Neurologia, e compará-lo com a minha realidade atual em
2025, após oito anos como assistente hospitalar,
percebo um contraste profundo entre a esperança
e o desencanto que permeiam essas duas fases da
minha carreira.
O Estado de Espírito em 2017
Com um misto de embaraço e tristeza, transcrevo
parcialmente os meus comentários finais incluídos no Curriculum Vitae para a avaliação final do
internato.
“Termino este currículo com a sensação de um
percurso marcado pelo aumento progressivo da
responsabilidade e por uma integração do conhecimento prático e teórico adquirido ao longo do
internato. Senti um apoio constante dos médicos
assistentes dos diferentes Serviços onde me integrei, seja na atividade em urgência, consultas, internamento ou execução de técnicas complementares de diagnóstico que me permitiram aprender, evoluir e tomar as decisões mais adequadas.
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Penso ter cumprido os objetivos a que me propus
durante este percurso. Tal não seria possível, no
entanto, sem o apoio dado pelos elementos do serviço, que asseguram o seu permanente funcionamento na nossa ausência.
Considero que, mais que um fim de ciclo, este momento representa o início de uma nova fase. A
perspetiva de descoberta e de aprendizagem contínuas fazem adivinhar um futuro estimulante e
repleto de desafios.” Tal como é possível ver pelos
comentários acima transcritos, posso afirmar que
tive um excelente internato de Neurologia (20122017). É claro que existem sempre altos e baixos,
mas posso dizer que me senti integrado num Serviço de Neurologia.
Tínhamos um a dois internos por ano, um a dois
especialistas por cada área de diferenciação
de Neurologia (cerca de 8 assistentes, por vezes
mais). Foram entrando e saindo colegas de especialidade que recordo com carinho. Sinto que
tinha uma missão, acabar o internato, tentar ter
uma boa nota final para conseguir uma vaga do
meu agrado e ser um bom neurologista. Sinto que
as restantes pessoas do Serviço de Neurologia estavam empenhadas em assegurar que essa meta
fosse alcançada, promovendo um ambiente de
trabalho motivador, desafiante e focado em oferecer novas respostas aos doentes.
A realidade é que esta situação não se restringia
apenas ao meu Serviço; o Hospital contava com
muitos internos e especialistas em diversas áreas
Sinto que tinha uma missão,
acabar o internato, tentar
ter uma boa nota final para
conseguir uma vaga do
meu agrado e ser um bom
neurologista
da Medicina. É precisamente nesta fase que se
estabelecem laços com colegas de outras especialidades, permitindo-nos trabalhar em equipa,
oferecer uma visão mais abrangente do doente e
da sua doença, melhorar a coordenação dos cuidados e aumentar a probabilidade de sucesso no
tratamento.
Também houve desafios. Iniciei o internato na “era
da austeridade”. No terceiro dia, apresentei a minha primeira minuta de declaração pedindo dispensa de trabalho suplementar, a qual conservo
até hoje. Perdemos dias de férias, houve uma redução no valor pago pelas horas extraordinárias,
e ainda tivemos de lutar para que estas pudessem
continuar a ter um limite. Vi os meus primeiros
colegas a rescindirem com o SNS, e a optarem por
contratos como prestadores exclusivamente em
medicina privada.
O Estado de Espírito em 2025
Ao refletir sobre minha trajetória, ao dia de hoje,
seria difícil comentar sobre os meus anos como
assistente hospitalar e orientador de formação
com o mesmo entusiasmo do período do internato compreendido entre 2012 e 2017.
A gradual falta de recursos financeiros, resultando
em falta de equipamentos, medicamentos e infraestruturas adequadas, compromete a qualidade do atendimento e a capacidade de resposta às
necessidades crescentes da população.
A degradação das condições de trabalho, incluindo número insuficiente de profissionais, aumento
da pressão e o excesso de carga horária, que podem levar a burnout e desmotivação entre os profissionais de saúde.
O acesso desigual aos serviços de saúde com disparidades na oferta de cuidados de saúde entre
diferentes regiões do país.
O aumento das listas de espera para consultas e
procedimentos, que afetam negativamente a saúde dos doentes e aumentam a insatisfação e pressão para com os serviços e profissionais.
A burocracia excessiva na gestão do SNS que