FNAMzine #4 - A voz do SNS - Flipbook - Page 20
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CONVIDADA ESPECIAL
Ana Matos Fernandes (Capicua)
O SNS é uma das grandes
conquistas da nossa democracia
Ana Matos Fernandes, do Porto, de 1982, é conhecida no mundo artístico como Capicua. Rapper e
escritora acabou de lançar um novo álbum - “Um gelado antes do fim do mundo” - que incorpora
algumas das suas preocupações sociais. Além do seu trabalho como autora e cantora, é licenciada
em Sociologia e doutorada em Geografia Humana.
FNAMZINE (FZ): Tem um álbum novo, muito marcado por algumas preocupações sociais, quer contar-nos que temas são esses?
Capicua (C): É um disco sobre o nosso tempo, que
fala sobre os grandes desafios que temos em
mãos. Acho que o que me motivou a falar sobre
eles é a sua dimensão, a sua esmagadora escala
e a ansiedade que esses problemas vão causando. Acho que há uma sensação de fim do mundo,
um acentuar de tensões, de conflitos, uma grande
polarização, uma toxicidade muito grande no debate público.
FZ: Como olha para a realidade artística no que
diz respeito a serem portadores de causas? A música de intervenção está viva e recomenda-se?
C: Na música portuguesa sinto que há muita gente que fala sobre aquilo que as preocupa, aquilo
que são os grandes temas do nosso tempo. Quer
do ponto de vista da diversidade, quer de estilos
de música, quer a diversidade demográfica dos
compositores e dos intérpretes. E isso faz com
que hoje tenhamos fado sobre a gentrificação, tenhamos fado sobre temas LGBTQIA+, temos música ecologista, antirracista, todo o tipo de causas.
FZ: Tem expressado algumas preocupações relativamente ao SNS, porquê?
C: Acho que o SNS é uma das grandes conquistas
da nossa democracia, do 25 de Abril, e que tem
que ser protegido. As minhas preocupações são
as preocupações de muitos portugueses, quando percebemos que há interesses privados que
querem esvaziar o SNS para benefício próprio.
Também percebemos que durante a última década houve um grande desinvestimento, desde os
anos da austeridade, naquilo que são as carreiras
dos trabalhadores do SNS. Depois dos anos da
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pandemia, em que houve um desgaste enorme de
serviços que já estavam bastante frágeis, assistimos às consequências desses desinvestimentos
de uma forma ainda mais óbvia e estamos a perceber que temos mesmo que tomar o SNS novamente como uma prioridade.
FZ: Como utente, o que é que lhe parece estar melhor e pior?
C: Como utente eu estou bastante satisfeita.
Tanto no centro de saúde em que sou atendida
como quando precisei de assistência durante
a gravidez e no parto. Tive o meu filho num hospital público e só posso elogiar o SNS. O que eu
posso perceber pelas notícias é que há uma
grande falta de recursos humanos e que isso
prejudica as urgências obstétricas, os tratamentos oncológicos em que não deveria haver filas de espera e outras áreas sensíveis.
FZ: Tem acompanhado as reivindicações médicas?
C: Tenho acompanhado e, lá está, acho que esse
é o grande desafio neste momento, captar recursos humanos para o SNS ou, pelo menos, preservar recursos humanos no SNS. Para isso têm que
ser dadas condições de trabalho dignas, o que
está longe de acontecer dada a quantidade de
horas que os médicos são obrigados a trabalhar
no SNS.
Preocupa-me a pressão
dos interesses privados
na erosão num SNS que já
está bastante fragilizado
FZ: Como é a realidade laboral no mundo artístico?
C: No mundo artístico há uma grande precariedade, uma grande informalidade e uma grande
instabilidade. Há muitas fases em que há muito trabalho e outras nem tanto e, portanto, os
trabalhos da cultura estão normalmente muito
desprotegidos, na sua grande maioria feitos por
trabalhadores independentes, o que faz com
que não tenham garantias e proteção em muitas
circunstâncias, no desemprego, nas baixas ou
até na parentalidade.
FZ: Sentem-se valorizados pela sociedade?
C: Eu acho que os trabalhos da cultura, pelo seu
trabalho ser público, até teriam facilidade de ter
uma plataforma pública e de grande visibilidade. O problema é que não há grande organização,
nem sequer sindical, que tenha força, porque os
artistas sendo, de áreas muito diferentes, ou
tendo volumes de trabalho muito diferentes,
não têm tanta facilidade em conciliar estratégias e reivindicações para uma mobilização comum.
FZ: Como vê a realidade política e social em Portugal?
C: Vejo com preocupação. Aliás, como vejo a realidade internacional. Estamos a viver um mundo
de grande instabilidade e isso afeta obviamente
a nossa economia e as perspetivas de futuro. Ao
mesmo tempo, no nosso país, temos uma grande dificuldade em ter estabilidade política, que
seria bastante desejável, num momento em que
tudo parece tão periclitante, instável e imprevisível. Também me preocupa o crescimento dos
populismos e da extrema-direita.
Todos os democratas têm que estar muito alerta
e muito participativos para que esta espécie de