FNAMzine #4 - A voz do SNS - Flipbook - Page 27
µ 27 | FNAMZINE | maio 2025
Que mensagem deixaria aos jovens médicos?
Eu acho que esta é uma área muito desafiante, e contrariamente àquilo que se
pode pensar, é altamente recompensadora em termos de satisfação profissional.
Aprendemos a contabilizar a nosso favor pequenas conquistas, pequenos ganhos de
saúde e na organização da vida das pessoas que nos procuram. Se alguém controlar
o consumo, se conseguir passar a ser funcional, e se sentirmos que foi um ganho
significativo é recompensador. Não tem a espetacularidade de cirurgias heróicas, mas
tem ganhos concretos quer para o indivíduo, quer para a sociedade.
FZ: Com a descriminalização do consumo?
JG: Sim. A Lei, a lei é de 2000, e foi aplicada a partir
de 2001. Mas o modelo português da descriminalização não foi inventado de repente. Já estava a
ser construída em todo o processo de acumulação de experiência ao longo dos vinte anos que
lhe relatei.
FZ: Descriminalizar resolveu os problemas?
JG: Não bastou descriminalizar. Foi preciso, a par
da descriminalização, prosseguir a criação de toda uma rede de respostas.
FZ: E faz sentido dar o passo seguinte, no sentido
da legalização?
JG: Mantenho-me com dúvidas em relação a isto.
Já houve várias iniciativas legislativas, e temos
sido chamados a pronunciar-nos. O que dizemos
é que ainda não temos uma evidência sólida a
dar esse passo.
FZ: O caminho feito foi responsável por termos
superado o flagelo da heroína?
JG: O caminho que foi feito ganhou à heroína. Os
números hoje são residuais e ainda muito ligados à população que consumia nos anos 80 e 90.
FZ: E quais os grandes desafios agora? Há novas
substâncias a aparecer?
JG: Essa é uma realidade que complica bastante
toda a equação. É um jogo do gato e do rato, todos os dias são lançados para o mercado novas
substâncias, e cada vez mais agressivas em termos de efeitos. De fácil circulação e consumo.
FZ: E Portugal, está exposto a essa realidade?
JG: Por enquanto, a esmagadora maioria dos problemas ocasionados pelo uso de drogas advém
das substâncias clássicas. Heroína, cocaína, e o
crack, uma outra apresentação, mais barata, da
cocaína. E nas legais, continuamos a ter problemas sérios de abuso do álcool.
FZ: E sobre a adição ao jogo, também está sob a
vossa alçada?
JG: Também. Mas estamos ainda numa fase algo
incipiente, no início.
FZ: Afirmou que “é preferível prevenir do que tratar, é preferível tratar do que punir”. Continua a
ser um bom resumo?
JG: É a filosofia de todo este sistema. E tem de ser
visto de forma contínua. Não bastam grandes
eventos direcionados para campanhas de massas, eventos com artistas de renome, e depois
falhar a resposta quotidiana.
FZ: Porque já tinham resultados?
JG: Sim, os resultados já começavam a aparecer,
mas sobretudo porque o grupo de trabalho que
tinha desenvolvido a resposta era muito diversificado ideologicamente.
FZ: Não receia recuos?
JG: No contexto atual é possível que haja algumas investidas, estamos de certa forma à espera
delas, mas é reconhecido pela sociedade portuguesa que a descriminalização foi um avanço
civilizacional. Há pouco tempo, o Presidente da
Câmara do Porto também verbalizou o desejo
de endurecimento das políticas, mas felizmente
acabou por apoiar a criação de novas respostas
que faziam falta, nomeadamente o espaço de
consumo vigiado.
FZ: Como presidente do ICAD, que dificuldades
ainda enfrentam? São comuns ao resto do Serviço Nacional de Saúde (SNS)?
JG: Algumas são comuns. Listas de espera grandes, sobretudo na região de Lisboa, aliada à
falta de médicos. Todas as equipas estão muito
depauperadas. Também temos dificuldade em
atrair e reter novos médicos. Somos muito castigados ao nível da progressão na carreira, porque
a nossa valência não é facilmente mensurável.
No ICAD sempre resistimos à ideia de sermos
uma entidade paralela para toxicodependentes,
e precisamos de estar articulados com o resto do
SNS.
FZ: As questões que algum sindicalismo médico tem levantado, como a reposição da jornada
semanal de 35 horas, a melhoria das condições
de trabalho e a justa progressão na carreira, são
questões que fazem sentido?
JG: Sim, claro que fazem! Eu sou médico de família e dediquei toda a minha vida profissional a
esta área. E o que é fato é que em termos de progressão na carreira alguns de nós nunca conseguiremos evoluir.
FZ: Identifica mudanças nas preocupações e nos
comportamentos dos médicos, nomeadamente
relativamente à indisponibilidade do trabalho
suplementar para além do limite legal, e nas respostas que o sindicalismo médico tem dado?
JG: Apesar de ser sindicalizado num dos sindicatos da FNAM, o Sindicado dos Médicos da Zona
Sul, não sou um ativista sindical. Também não
temos a pressão que os colegas sentem, sobretudo ao nível das urgências. Temos unidades
com internamento, mas algumas delas desativadas, tal é o estado de degradação. Essa é uma das
questões que nos afeta e preocupa. Além da mudança de circunstâncias, também ajuda a nossa nova liderança sindical que tem uma postura
aguerrida, que posso testemunhar também pelo
que me dizem as pessoas à minha volta.
Os resultados já começavam a aparecer, mas sobretudo
porque o grupo de trabalho que tinha desenvolvido
a resposta era muito diversificado ideologicamente
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