FNAMzine #5 - Defender os Médicos do Desgaste Rápido - Flipbook - Page 11
µ 11 | FNAMZINE | outubro 2025
Relatos SNS Saúde Pública
Era uma casa muito engraçada,
não tinha tecto, não tinha nada
ANDRÉ ARRAIA GOMES
ASSISTENTE DE SAÚDE PÚBLICA NA USP DO
ALTO ALENTEJO | DIRIGENTE DO SMZS E CONSELHEIRO DA FNAM
Na arquitectura da Saúde Pública, há estruturas que, mesmo com idade avançada, sustentam o essencial. A Direcção-Geral da Saúde (DGS) é uma dessas casas. E
se hoje a querem deitar abaixo para construir um instituto público mais “moderno”, convém olhar com olhos de ver o que
está em causa: não é uma simples renovação, é uma demolição apressada.
O governo PSD-CDS em gestão, à beira das
últimas eleições legislativas, anunciou
uma proposta de reforma da saúde pública na pasta de transição. Nessa pasta
incluía-se a possibilidade da transformação da DGS num Instituto Público. De acordo com a proposta, o objetivo é conferir
ao organismo “uma liberdade diferente
da actual”
Ao transformar a DGS num instituto público, retirando-lhe a autoridade técnica e o
espaço que hoje ocupa, ficamos com uma
“casa” sem paredes nem alicerces.
A pandemia ensinou-nos – a custo – que uma autoridade
de saúde presente, com capacidade de decisão
e independ攃Ȁncia científica, salva vidas
Um organismo técnico subordinado a lógicas político-administrativas, permeável
a agendas e instável na sua missão. Ou seja, uma DGS decorativa.
Um instituto público pode ser mais facilmente instrumentalizável politicamente.
Tem estatutos próprios aprovados por
despacho governamental, o que facilita
mudanças rápidas ao sabor de interesses
políticos. O conselho diretivo do instituto
é nomeado pelo governo, e não há garantia de que seja composto por especialistas de saúde pública.
A pandemia ensinou-nos – a custo – que
uma autoridade de saúde presente, com
capacidade de decisão e independência científica, salva vidas. E agora, com a
poeira ainda a assentar, querem substituir uma estrutura centenária por um organismo mais “ágil”, mas, de facto, menos
autónomo? É como tirar o telhado a uma
casa para que entre mais luz, esquecendo
que vem aí tempestade.
A saúde pública não é lugar para experiências de engenharia política. É património comum, construído com rigor,
tempo e memória. Melhorar? Sim. Esvaziar? Nunca.
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