FNAMzine #5 - Defender os Médicos do Desgaste Rápido - Flipbook - Page 23
µ 23 | FNAMZINE | outubro 2025
REVITALIZAR O SNS
•FZ: O que deve ser feito para salvaguardar o
futuro do SNS?
CS: É preciso revitalizar o SNS com investimento
sério do governo. Precisamos de um SNS
justo, público, que recupere os princípios
fundamentais: médicos como funcionários
públicos, carreiras definidas, respeito pela
antiguidade e pelo currículo científico,
avaliação por pares, salários dignos e horários
estruturados.
•FZ: Também esteve envolvido na luta contra
as horas suplementares ilegais. Como foi essa
experiência?
CS: Sim, participei na luta laboral dentro do
hospital, estive envolvido nos Médicos em
Luta e faço parte dos Médicos Unidos. Foi um
movimento que quase venceu a batalha. Mas,
num momento decisivo, a outra estrutura
sindical assinou um acordo muito mau, que
considero uma traição à luta dos médicos até
então.
•FZ: Apesar das dificuldades, o SNS continua a
dar boas respostas?
CS: Sim. Os dados da OCDE de 2022 mostram
que Portugal, com gastos em saúde que são
metade da Alemanha e um terço dos EUA,
alcança resultados semelhantes em esperança
de vida e mortalidade infantil, e até melhores
do que os EUA. O SNS tem falhas e pode ser
gerido melhor, mas está longe de ser ineficaz.
•FZ: Que mensagem deixaria aos colegas,
decisores políticos e utentes?
CS: Somos trabalhadores como todos os
outros, explorados pelo Governo e pela
medicina privada. Só através da luta coletiva – e
isso passa pelos sindicatos – é que poderemos
recuperar direitos. Percebo que haja críticas
aos sindicatos, eu próprio já critiquei, mas
precisamos deles.
•FZ: E aos utentes?
CS: Espanta-me a eficácia do controlo dos
meios de comunicação sobre o pensamento
coletivo. Surpreende-me que as pessoas
aceitem sem revolta o colapso do SNS.
•FZ: E aos governantes?
CS: I n fe l i z m e n te, o s go v e r n a n te s n ã o
defendem a população nem os profissionais
de saúde. Estão a destruir o SNS de forma
consciente, para substituí-lo pela saúde
privada. Mas num hospital privado o objetivo
não é ter bons resultados, é ter lucro.
Surpreende-me
que as pessoas aceitem
sem revolta o colapso
do SNS.
deixei de fazer clínica, passando a trabalhar apenas no laboratório.
FZ: A falta de equidade territorial que
descreve significa que um doente oncológico e hematológico em Aveiro
tem o mesmo acesso ao diagnóstico e
tratamento que um doente de Lisboa
ou do Porto?
CS: Quando cheguei a Aveiro, os doentes não tinham esse acesso. O hospital
tinha uma realidade primitiva: doentes
sem diagnóstico arrastavam-se pela
urgência com problemas básicos que
não eram identificados por falta de hematologia.
Agora, felizmente, existe um serviço
com cinco especialistas. Foi uma conquista dura.
FZ: Faz sentido falarmos num “tsunami” de necessidades oncológicas geriátricas face ao envelhecimento da
população?
CS: O acesso à saúde, especialmente à
oncologia, será uma luta entre a população e quem governa.
Hoje, a incidência do cancro é elevada: um em cada dois homens e uma em
cada três mulheres serão afetados ao
longo da vida. O envelhecimento é um
fator, mas os casos aumentam também
nas crianças, devido a poluição, hábitos de vida e outros fatores ambientais.
Apesar da melhoria no diagnóstico, o
aumento é real em todas as idades.
FZ: Quais os maiores desafios nesta
área?
CS: O preço da saúde explodiu. A indústria farmacêutica especula e levou os
custos ao limite, capturando a regulação e impondo preços astronómicos.
Há tratamentos que chegam a meio milhão de euros.
FZ: O desmantelamento do SNS penaliza sobretudo as populações mais pobres?
CS: Sem dúvida. Na oncologia, e em
particular na hematologia, a privatização em curso em Portugal será catastrófica. O país tem pessoas ricas, mas
não tem ricos suficientes para sustentar a oncologia no setor privado.
FZ: O que poderia ser feito para controlar os preços dos fármacos?
CS: A maioria dos medicamentos, hoje,
está fora de patente. O Estado poderia
produzi-los sem problema. Isso só não
acontece porque o poder está capturado pelos interesses privados, que querem manter um mercado lucrativo para
as farmacêuticas. A propriedade intelectual deveria ser limitada. As farmacêuticas dizem que as patentes se justificam pelo investimento em investigação. Mas isso é falso: mais de metade
da investigação é pública, e a indústria
gasta mais em publicidade do que em
ciência.
FZ: E se nada mudar?
CS: Teremos uma saúde para ricos e outra
para pobres. Os preços continuarão proibitivos e só os ricos terão acesso. Já hoje
os ricos têm maior esperança de vida.
µ FNAMZINE | CARLOS SEABRA